16 de fevereiro de 2009

Compra e venda “ad corpus” e “ad mensuram”: alguns esclarecimentos

por Gilberto de Souza, advogado

Muitos são os cuidados que devemos tomar no momento de comprarmos um imóvel. Uma detalhe a ser observado no momento da assinatura do contrato é verificar se a compra e venda é ad corpus ou ad mensuram.

1. Compra e venda ad corpus

Diz-se que a compra e venda é ad corpus quando os contratantes levam em consideração o corpo, o objeto e as características de localização, suas comodidades e outras características que são levadas em consideração, sendo que a área do imóvel não tem quase importância.

A frase geralmente utilizada nos contratos para identificar esta modalidade de compra e venda é a de que “as dimensões do imóvel são de caráter secundário, meramente enunciativas e repetitivas das dimensões constantes no registro imobiliário”.

Para SÍLVIO RODRIGUES in “Direito Civil”, vol. 3, 11a edição, Editora Saraiva, São Paulo, p. 170,tem-se entendido ser a referência à medida meramente enunciativa, quando vem acompanhada da locução ‘mais ou menos, quando a coisa vendida é designada por limites certos, quando o imóvel está murado ou cercado, e ainda quando há especificação ou nomeação de confinantes”.

É o caso de quem compra uma sala comercial interessada em sua localização e na forma que esta é dividida. Ela faz a proposta de compra e venda sem se interessar na metragem do imóvel, se seu tamanho realmente corresponde ao da escritura, o que interessa é a sala, a localização, a forma que é dividida, a área é um detalhe quase sem importância. outro exemplo é de quem compra a Fazenda Lucro Certo, com aproximadamente 800 hectares, sendo as medidas meramente enunciativas.

Washington de Barros Monteiro, em seu Curso de Direito Civil, Ed. Saraiva, 8ª ed., pg. 109, traz notas esclarecedoras sobre este instituto:

“Na venda ad corpus “o vendedor aliena o imóvel como um corpo certo e determinado, perfeitamente individuado pelas confrontações, claramente caracterizado pelas suas divisas, discriminadas e conhecidas: a fazenda Petrópolis, a chácara Marengo, a vila Kirial. Na venda ad corpus, compreensiva de corpo certo e individuado, presume-se que o comprador examinou as divisas do imóvel, tendo intenção de adquirir precisamente o que dentro delas se continha. A referência à metragem ou à extensão superficial é meramente acidental e o preço é global, pago pelo todo, abrangendo a totalidade da coisa”. (...) “Entende-se que o comprador percorreu o imóvel, conheceu sua extensão, verificou as divisas. Comprou-o afinal, não em atenção à área declarada, mas pelo conjunto que lhe foi mostrado, conhecido e determinado. Estando murado ou cercado quase todo o imóvel comprado reputa-se acidental a declaração das medidas, ou quando há especificação ou nomeação dos confinantes.”

A principal consequência da compra e venda ad corpus é que o comprador não terá direito a indenização ou abatimento do preço caso o imóvel seja menor do que a metragem da escritura. Este é um posicionamento pacífico na jurisprudência quando o negócio não envolve relação de consumo.

Quando for relação de consumo, há sim o direito de indenização ou abatimento do preço. Com efeito, em uma Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios está sendo discutida a legalidade de uma cláusula contratual na qual consta que são meramente enunciativas as dimensões no caso de haver qualquer diferença de áreas de até 5%, estabelecendo não caber às partes o direito de abatimento e a complementação de preço resultante desta diferença. O STJ acolheu os argumentos do MP e considerou esta cláusula nula, vejamos a Ementa do julgado:

“Civil. Recurso especial. Contrato de compra e venda de imóvel regido pelo Código de Defesa do Consumidor. Referência à área do imóvel. Diferença entre a área referida e a área real do bem inferior a um vigésimo (5%) da extensão total enunciada. Caracterização como venda por corpo certo. Isenção da responsabilidade do vendedor. Impossibilidade. Interpretação favorável ao consumidor. Venda por medida. Má-fé. Abuso do poder econômico. Equilíbrio contratual. Boa-fé objetiva.
- A referência à área do imóvel nos contratos de compra e venda de imóvel adquiridos na planta regidos pelo CDC não pode ser considerada simplesmente enunciativa, ainda que a diferença encontrada entre a área mencionada no contrato e a área real não exceda um vigésimo (5%) da extensão total anunciada, devendo a venda, nessa hipótese, ser caracterizada sempre como por medida, de modo a possibilitar ao consumidor o complemento da área, o abatimento proporcional do preço ou a rescisão do contrato.
- A disparidade entre a descrição do imóvel objeto de contrato de compra e venda e o que fisicamente existe sob titularidade do vendedor provoca instabilidade na relação contratual.
- O Estado deve, na coordenação da ordem econômica, exercer a repressão do abuso do poder econômico, com o objetivo de compatibilizar os objetivos das empresas com a necessidade coletiva.
- Basta, assim, a ameaça do desequilíbrio para ensejar a correção das cláusulas do contrato, devendo sempre vigorar a interpretação mais favorável ao consumidor, que não participou da elaboração do contrato, consideradas a imperatividade e a indisponibilidade das normas do CDC.
- O juiz da eqüidade deve buscar a Justiça comutativa, analisando a qualidade do consentimento.
- Quando evidenciada a desvantagem do consumidor, ocasionada pelo desequilíbrio contratual gerado pelo abuso do poder econômico, restando, assim, ferido o princípio da eqüidade contratual, deve ele receber uma proteção compensatória.
- Uma disposição legal não pode ser utilizada para eximir de responsabilidade o contratante que age com notória má-fé em detrimento da coletividade, pois a ninguém é permitido valer-se da lei ou de exceção prevista em lei para obtenção de benefício próprio quando este vier em prejuízo de outrem.
- Somente a preponderância da boa-fé objetiva é capaz de materializar o equilíbrio ou justiça contratual.
Recurso especial conhecido e provido. (REsp 436853/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/05/2006, DJ 27/11/2006 p. 273). Grifamos.

Desta forma, via de regra, quando o contrato de compra e venda é celebrado como sendo ad corpus não há direito a indenização ou abatimento do preço, mas se há relação de consumo haverá esta possibilidade conforme o Superior Tribunal de Justiça.

2. Compra e venda ad mensuram

Diferentemente na compra e venda ad mensuram a área do imóvel é o fator preponderante para a negociação. Neste caso, se imóvel comprado tiver área menor do que a constante no contrato há direito I) ao abatimento do preço, II) à complementação da área ou III) a resolução do contrato.

A jurisprudência é clara neste sentido:

EMENTA: APELAÇÃO. AÇÃO DE RESILIÇÃO DE CONTRATO. COMPRA E VENDA DE ÁREA RURAL COM EXTENSÃO INFERIOR À EFETIVAMENTE DEVIDA. VENDA AD MENSURAM CARACTERIZADA. As dimensões do imóvel vendido não correspondendo às constantes do contrato de compra e venda, é assegurado o direito do comprador de exigir a complementação da área por inadimplemento contratual, ou, até mesmo a resolução do contrato. Negaram provimento ao apelo. Unânime. (Apelação Cível Nº 70020028692, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Alexandre Mussoi Moreira, Julgado em 08/01/2009)

Geralmente, sem o intuito de esgotar a matéria, os termos a forma que é utilizada para efetuar uma compra e venda como ad mensuram é a colocação no contrato de que foi comprada a área de, digamos, 30 hectares por tantos reais o hectare, pode constar cláusula prevendo o abatimento do preço caso haja diferença nas medidas ou a complementação da área.

Importante destacar que o Código Civil estabelece uma presunção de que a referência às dimensões do imóvel é meramente enunciativa quando a diferença encontrada entre a área constante do contrato e a área efetiva do imóvel não exceder de um vigésimo, ou seja, 5% da área total anunciada. Tendo em vista esta disposição a jurisprudência já julgou que “verificada que a diferença da dimensão do lote de terreno excede 1/20, justifica-se o abatimento e restituição proporcional do preço do imóvel.” (Apelação Cível Nº 70007582828, Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos Cini Marchionatti, Julgado em 17/12/2003).

Esta presunção do Código pode ser elidida com a redação de uma cláusula contratual dispondo de forma diversa, no entanto devemos observar se a relação contratual é ou não de consumo, pois neste caso, tala cláusula é invalida.

3. Critérios para distinção entre a modalidade ad corpus e ad mensuram segundo a jurisprudência

Ao pesquisarmos algumas jurisprudências encontramos uma que nos esclarece como sabermos se a compra e venda é em razão do corpo ou da metragem, foi no voto do eminente Rel. Luiz Renato Alves da Silva na Apelação Cível Nº 70037412426, da Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS que encontramos os critérios:

Da leitura da inicial depreende-se que a pretensão principal dos demandantes é o abatimento do preço do imóvel, em face do equívoco quanto à dimensão do terreno, posto que os demandantes alegam ter  havido erro no contrato que resultou na construção da moradia avançando 0,45 metros sobre o lote n° 10 que pertence ao vizinho lindeiro. Os autores destacam o artigo 500 do Código Civil, que dispõe que: “Se, na venda de um imóvel, se estipular o preço por medida de extensão, ou se determinar a respectiva área, e esta não corresponder, em qualquer dos casos, às dimensões dadas, o comprador terá o direito de exigir o complemento da área, e, não sendo isso possível, o de reclamar a resolução do contrato ou abatimento proporcional ao preço.” Assim, conforme consta na folha 13, item ‘d.1’ dos requerimentos, os demandantes requerem a procedência da ação para “reconhecer e declarar o direito dos autores ao abatimento do preço do imóvel”.

Ocorre que o direito de exigir o complemento da área, ou reclamar a resolução do contrato ou, ainda, abatimento proporcional do preço pago, amparado no artigo 500 do CC e parágrafos 1° e 2°, se aplica quando a negociação tenha se dado como ad mensuram.

No caso em tela, compulsando o contrato de promessa de compra e venda, acostado às fls. 18 e 26, não verifico que a negociação efetuada se configure como ad mensuram.

Apesar de as dimensões da parte do terreno negociada estarem expressas no contrato, as condições do negócio – preço certo pelo bem – afastam qualquer possibilidade de interpretação de que a vontade das partes tenha sido a de negociar o imóvel em razão de sua extensão, ou metragem. Não houve fixação do preço por metro quadrado, o que definiria, sem qualquer dúvida, a venda ad mensuram. Assim, manifestamente não se trata de venda ad mensuram, mas sim ad corpus.

Sendo a venda ad corpus aplica-se o parágrafo 3º do artigo 500 do CC e não os parágrafos 1° e 2°, verbis:

§ 3o Não haverá complemento de área, nem devolução de excesso, se o imóvel for vendido como coisa certa e discriminada, tendo sido apenas enunciativa a referência às suas dimensões, ainda que não conste, de modo expresso, ter sido a venda ad corpus.

Dessa forma, não prospera a pretensão dos autores de obter abatimento do preço.

Nesse mesmo compasso, colaciono precedente jurisprudencial dessa Câmara:

COMPRA E VENDA. VENDA AD CORPUS OU AD MENSURAM. DIFERENCIAÇÃO. A SIMPLES REFERÊNCIA CONTRATUAL À ÁREA SUPERFICIAL DO IMÓVEL TRANSACIONADO NÃO CONDUZ À CONCLUSÃO DE QUE A VENDA SE DEU AD MENSURAM. É PRECISO INVESTIGAR ACERCA DA REAL INTENÇÃO DAS PARTES. PROVA DOS AUTOS CONDUZ À CONCLUSÃO DE QUE SE ESTÁ DIANTE DE COMPRA E VENDA AD CORPUS. APELAÇÃO PROVIDA. (Apelação Cível Nº 70018318139, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Elaine Harzheim Macedo, Julgado em 22/03/2007)

 

Conforme disposto no julgado destacado acima: “Significativa parte da doutrina adotou o entendimento de que as vendas ad corpus representariam a regra geral, sendo, na dúvida da forma como a contratação se realizara, presumível, cabendo à parte que alega sua concretização como sendo venda ad mensuram o ônus da prova, nos termos do art. 333 do CPC. Sem embargo de não se endossar esse entendimento, quando controvertida a questão da fixação do preço, o que se revela importante é o exame de todos os elementos que circunstanciaram a transação efetuada.”

 

4. Conclusão

No momento de comprar um imóvel é importante conferir a metragem, principalmente se a compra for ad corpus para poder fazer o abatimento do preço no momento da negociação, porque depois de o negócio estar concretizado e não ficar caracterizado uma relação de consumo o abatimento do preço, a resolução ou a complementação da área se torna inviável juridicamente. E, caso haja relação de consumo, certamente haverá necessidade de bater as portas do judiciário para ter seus direitos reconhecidos.

Caso tenha dúvida se o contrato é ad corpus ou ad mensuram não existe procure um advogado para lhe dar as melhores orientações e lhe esclarecer algumas dúvidas e evitar um litígio desnecessário.

A compra e venda ad mensuram não oferece prejuízos ao comprador caso seja verificado uma inexatidão contratual referente a área, esta deverá ser de uma forma ou de outra indenizada (abatimento do preço, complementação ou resolução).