19 de novembro de 2008

Responsabilidade civil em face de ato praticado em estado de necessidade

É impossível afastar a responsabilidade de um motorista de ônibus que, ao avistar um caminhão na contramão (dirigido por motorista embriagado que acabou condenado no Juízo criminal), invadiu o acostamento e atropelou uma jovem que estava na beira da rodovia. A 3ª Turma do STJ não atendeu ao recurso de uma empresa gaúcha (Viação Montenegro S.A.) e manteve a decisão de segunda instância que entendeu existir responsabilidade civil mesmo quando o ato foi praticado em comprovado estado de necessidade.

O acidente de trânsito envolveu um ônibus e um caminhão, em 24 de setembro de 1990, na RS-240, no Km 2, trecho São Leopoldo-Portão, Cristine, filha da autora (Erlita Terezinha Fonseca da Rosa), foi atropelada por ônibus da empresa ré, que desviou de outro veículo.

Ela estava parada à beira da estrada quando o motorista do caminhão que deu origem ao acidente tentou fazer uma ultrapassagem. A manobra não deu certo e o caminhão atingiu a lateral do ônibus que vinha no sentido contrário. A colisão fez o condutor do ônibus perder o controle do coletivo e atingir a jovem no acostamento, antes de parar. Ela morreu poucos dias depois.

A mãe da vítima ajuizou, somente em novembro de 2003, isto é, 13 anos depois do acidente - ação contra a empresa. Esta se defendeu alegando que "o ônibus teria sido um mero objeto involuntário no desdobramento causal, já que este foi arremessado pelo impacto sobre o corpo da vítima". A sentença proferida pelo juiz Paulo de Tarso Carpena Lopes , da comarca de São Leopoldo, foi de improcedência dos pedidos. O magistrado entendeu que "o atropelamento da filha da autora ocorreu somente porque o caminhão cortou a frente do ônibus, fazendo com que este invadisse a área lateral da faixa e atropelasse a vítima, sendo a velocidade do coletivo (60km/h) compatível para o local".

A 12ª Câmara Cível do TJRS ao prover parcialmente o recurso da mãe da vítima, deferiu reparação moral de 50 salários mínimos e pensionamento ao longo de sete anos, de dois terços do salário mínimo. O relator foi o desembargador Orlando Heemann Júnior, cujo voto teve três pilares: "1) inafastável a responsabilidade do condutor do ônibus que avista a aproximação do caminhão na contramão de direção e invade o acostamento, atingindo a pedestre; 2) veículo da empresa ré que foi, inequivocamente, o causador direto dos danos ocasionados; 3) conduta da vítima que não contribuiu de qualquer forma para a ocorrência do evento".

A Viação Montenegro recorreu ao STJ, argumentando que o TJRS afrontara o princípio da irretroatividade das leis, pois a decisão estava inteiramente baseada em dispositivos contidos no atual Código Civil (de 2002), existindo relevante diferença de alcance entre as redações destes e dos dispositivos correlatos no antigo Código Civil (CC/1916), que era a lei vigente à época do fato (1990).

O anterior Código Civil previa apenas a responsabilidade civil por danos às coisas, e não às coisas e às pessoas, como faz o novo Código. Assim, no CC/1916 não havia referência à obrigação de indenizar pelos danos causados diretamente à pessoa que sofria a lesão nos casos de estado de necessidade.

Ao analisar o processo, a relatora Nancy Andrighi, destacou que, em termos literais, é verídica a afirmação de que o artigo 1.519 do CC/1916 conferia direito à indenização apenas pela destruição de coisa, se o dono desta não fora culpado do perigo, em face daquele que agiu em estado de necessidade, enquanto o dispositivo correspondente do CC/2002 assegura o mesmo direito tanto se o prejuízo for material quanto pessoal.

Diz a relatora que "porém, tal constatação não é suficiente para esgotar a matéria, ao contrário do que entende a Viação Montenegro, pois, na hipótese, houve o evento morte e a ação foi proposta pela mãe da vítima – de forma que o direito pessoal pleiteado é de terceiro que é estranho à configuração fática da situação de estado de necessidade".

Passou a ser necessária, assim, a intermediação de outras regras de responsabilidade civil, notadamente o artigo 1.526 do CC/1916 (atual artigo 943), segundo o qual “o direito de exigir reparação e a obrigação de prestá-la transmitem-se com a herança, exceto nos casos que este Código excluir” (ressalva que não consta no CC20/02) e o art. 1.540, segundo o qual “as disposições precedentes [relativas à liquidação da indenização por homicídio ou lesão corporal] aplicam-se ainda ao caso em que a morte, ou lesão resulte de ato considerado crime justificável, se não foi perpetrado pelo ofensor em repulsa de agressão do ofendido”.

Assim, entre o Código antigo e o atual, a diferença é de ordenação dos dispositivos, não de conteúdo propriamente dito. Em face dessa conclusão, a ministra salientou que "o TJRS, ao fazer referência aos dispositivos do novo Código Civil, não os usou como fundamento da decisão, mas apenas como reforço de argumentação, na medida em que a mesma solução jurídica era imperativa no contexto dos dois Códigos". O advogado José Armando da Silva Mello atua em nome da autora da ação. (REsp nº 1030565).


Fonte: Espaço Vital


Seue abaixo a íntegra da decisão:


RECURSO ESPECIAL Nº 1.030.565 - RS (2008⁄0027156-9)

RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE :
ADVOGADO : PEDRO LUÍS PIQUERES E OUTRO(S)
RECORRIDO :
ADVOGADO : JOSÉ ARMANDO DA SILVA MELLO E OUTRO(S)

EMENTA

Civil. Ação de indenização por danos materiais e compensação por danos morais movida por mãe de jovem falecida em acidente de trânsito. Atropelamento à beira de estrada por ônibus que havia sido abalroado por caminhão, em ultrapassagem temerária deste. Fato ocorrido em 1.990. Reconhecimento de culpa concorrente do motorista do ônibus. Discussão a respeito da possibilidade de indenização ainda quando reconhecido o estado de necessidade. Análise das relações intertemporais entre o Código Civil de 1916 e o Código Civil de 2002. Comparação entre os arts. 188, II, e 929 do CC⁄02 e 159, 160, II, e 1.519 do CC⁄16.
- Em análise soberana dos fatos e provas, o TJ⁄RS vislumbrou a ocorrência de culpa concorrente do motorista do ônibus. Tal ponto é impossível de ser revisto, em face da Súmula nº 7⁄STJ.
- O acórdão reconheceu dever de indenizar mesmo em face do estado de necessidade. Para tanto, fez menção expressa apenas a dispositivos do Código Civil de 2002, apesar de o acidente ter ocorrido em 1.990.
- Não há, a rigor, nenhum óbice à referência a dispositivos do Código atualmente em vigor no julgamento de lides vinculadas ao CC⁄16, quando é patente a similitude existente entre os dispositivos atuais e os revogados. O próprio STJ vem, costumeiramente, indicando as respectivas correspondências legislativas em seus acórdãos. Precedentes.
- Na presente hipótese, porém, alega-se a existência de diferenças substanciais na redação dos dispositivos referentes à reparação de danos causados em estado de necessidade. Nesse sentido, o CC⁄16 teria previsto apenas a indenização por danos a coisas, enquanto que o CC⁄02 a teria previsto, também, para lesão à pessoa, como ocorre na hipótese.
- Não houve, porém, retroação de disciplina jurídica, pois o exame do CC⁄16 indica que existe apenas uma diferença de sistematização da matéria entre os dois Códigos. Com efeito, o CC⁄16 também previa a reparação da lesão a pessoa por 'crime justificável'; porém, o fazia apenas no art. 1.540, contido no Capítulo referente à liquidação das obrigações resultantes de atos ilícitos. É essencial notar, para o correto deslinde da controvérsia, que a presente ação está sendo movida pela mãe da falecida, que pleiteia direito pessoal próprio em face da morte da filha.
- A diferença entre os Códigos, portanto, se limita à sistematização da matéria, porque o CC⁄02 condensou as hipóteses de lesão à pessoa e a coisas no mesmo dispositivo (art. 188, II).
- Não há, portanto, óbice à citação exclusiva do CC⁄02 no julgamento. Mesmo quando analisado isoladamente o art. 160, II, do CC⁄16, a doutrina questionava a aparente inversão de valores do dispositivo, que parecia privilegiar a defesa do patrimônio em detrimento da pessoa.
- Pela via interpretativa, portanto, o resultado do julgamento seria o mesmo; o CC⁄02 apenas adotou sistemática mais simples e, nessa condição, foi citado como reforço de argumentação, sem que houvesse qualquer desrespeito à aplicação da lei vigente ao tempo do fato.
Recurso especial não conhecido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, não conhecer do recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Massami Uyeda e Sidnei Beneti votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Brasília (DF), 05 de novembro de 2008(data do julgamento).


MINISTRA NANCY ANDRIGHI
Relatora

RELATÓRIO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):


Recurso especial interposto por VIAÇÃO MONTENEGRO S⁄A contra acórdão proferido pelo TJ⁄RS.
Ação: de indenização por danos materiais e compensação por danos morais, proposta por ERLITA TEREZINHA FONSECA DA ROSA em desfavor da ora recorrente.
Segundo consta da inicial, proposta em 2.003, a filha da autora foi atropelada e veio a falecer, em 26.09.1990, em acidente de trânsito que envolveu um ônibus da companhia ré e um caminhão. A vítima estava parada, à beira da rodovia, quando o motorista do caminhão que deu origem ao acidente tentou fazer manobra temerária de ultrapassagem, vindo a colher a lateral do ônibus que trafegava no sentido inverso. Este ficou descontrolado e acabou atingindo a vítima no acostamento antes de conseguir parar.
Nos termos da inicial – que transcreve os depoimentos prestados pelo motorista do ônibus no inquérito policial e como testemunha na ação penal movida em desfavor do motorista do caminhão, apontando algumas alegadas incongruências nas manifestações – apesar de ser do caminhoneiro a responsabilidade inicial pelo acidente, teria o preposto da ré concorrido culposamente para o resultado morte, porque não conseguiu manter o controle do veículo que dirigia após o abalroamento.
Em contestação, a empresa afirma que as responsabilidades sobre o acidente em questão já foram analisadas em anterior ação civil proposta por ela em face do motorista do caminhão, quando ficou estabelecida a culpa exclusiva deste. Na hipótese, o ônibus teria sido um mero objeto involuntário no desdobramento causal, pois fora arremessado pelo impacto sobre o corpo da vítima.
Sentença: julgou improcedentes os pedidos, porque “está a prova dos autos a demonstrar que o atropelamento da filha da autora ocorreu somente porque o caminhão (...) cortou a frente do ônibus, fazendo com que este invadisse a área lateral da faixa e atropelasse Claudia. A velocidade do ônibus, de 60 km⁄h era compatível para o local” (fls. 174).
Acórdão: interposta apelação onde reiterada a tese da culpa concorrente, o TJ⁄RS reconheceu a existência desta, salientando ainda que mesmo o eventual estado de necessidade não isentaria do dever de indenizar na hipótese, conforme a seguinte ementa:

“APELAÇÃO. ACIDENTE DE TRÂNSITO. ATROPELAMENTO E MORTE DE PEDESTRE EM ACOSTAMENTO. FATO DE TERCEIRO. RESPONSABILIDADE.
1. Inafastável a responsabilidade do condutor do ônibus que avista a aproximação do caminhão na contramão de direção e invade o acostamento, atingindo a pedestre, filha da autora, que veio a falecer em razão do atropelamento. Veículo da empresa ré que foi, inequivocamente, o causador direto dos danos ocasionados. Conduta da vítima que não contribuiu de qualquer forma para a ocorrência do evento.
Eventual reconhecimento de fato de terceiro, como causa da manobra repentina implementada, ou estado de necessidade, que não afasta a responsabilidade da parte ré (art. 929 do CC⁄2002). Ação regressiva facultada.
2. Pensionamento. Devido em favor da mãe ante a morte da filha solteira, então com 18 anos. Estabelecido o valor mensal em 2⁄3 do salário mínimo, a conta da data do acidente e até que a vítima completasse 25 anos, época em que presumivelmente casaria, constituindo família própria.
3. Danos morais. Verba reparatória estabelecida em 50 salários mínimos nacionais, tendo em conta a situação concreta e a circunstância de que a autora somente ajuizou a demanda depois de decorridos 13 anos do fato, pelo que presumida como mitigada sua dor.
Apelo da autora provido em parte” (fls. 198).

Embargos de declaração: rejeitados.
Recurso especial: alega violação:
a) ao art. 535 do CPC, por negativa de prestação jurisdicional; e
b) aos arts. 188, II, e 929 do CC⁄02 e 159, 160, II, e 1.519 do CC⁄16, seja porque impossível falar-se em estado de necessidade na hipótese, seja porque o acórdão está baseado nos dispositivos contidos no atual Código Civil, existindo, na hipótese, relevante diferença entre as redações destes e dos dispositivos correlatos no CC⁄16, que era a lei vigente à época do fato. Segundo o alegado, no Código antigo não havia referência à obrigação de indenizar pelos danos causados diretamente à pessoa que não era culpada pelo perigo na situação de estado de necessidade.
É o relatório.

VOTO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):


Cinge-se a controvérsia a delimitar a possibilidade de condenação ao ressarcimento de danos causados por acidente de trânsito, sob alegação de ocorrência de estado de necessidade, acrescida da análise necessária ao direito intertemporal a partir da vigência do CC⁄02.

i) Preliminarmente: violação ao art. 535 do CPC.

Os embargos declaratórios foram interpostos apenas com o objetivo de provocar o prequestionamento explícito do tema relativo ao estado de necessidade.
Como a matéria está devidamente prequestionada, não há razão para se reconhecer tal violação.

ii) Da caracterização dos fatos pelo TJ⁄RS.

No que diz respeito ao mérito, a primeira irresignação da recorrente é colocada no sentido de que o ônibus, na dinâmica do acidente, não teria sido mais do que um objeto inerte entre o caminhão que realmente causou o dano e a vítima. O motorista do ônibus, preposto da empresa, não assumiu participação voluntária no evento, pois teria sido colhido pelo desenrolar dos acontecimentos sem poder esboçar reação.
Esse ponto é verdadeiramente dependente da leitura fática dos elementos que constam nos autos. Na hipótese, muito embora já existisse sentença cível proferida em ação entre a ora ré e o caminhoneiro, onde definida a culpa exclusiva deste, e apesar da convicção do juiz nesse mesmo sentido, o TJ⁄RS reviu os fatos e chegou a conclusão diversa, no sentido de que houve participação culposa concorrente do preposto da ré na morte da vítima.
É o que se extrai claramente do acórdão recorrido, verbis:

“O condutor do caminhão efetuava ultrapassagem e invadiu a outra pista, interceptando a frente do coletivo e colidindo na lateral deste. O condutor do ônibus, por sua vez, pretendendo desviar, invadiu o acostamento, colhendo a filha da autora. (...)
É possível concluir, portanto, que a invasão do acostamento pelo ônibus da demandada foi causa direta do atropelamento e morte da vítima” (fls. 199⁄200).

Nesse contexto, resta inviável a alteração de tal conclusão nesta sede, pois tal providência requer o reexame do conjunto fático, o que é vedado pela Súmula nº 7⁄STJ.
Portanto, parte-se da premissa inafastável de que houve, ao menos, participação voluntária do preposto da empresa no acidente.

iii) Da aplicação do estado de necessidade à hipótese.
iii.i) colocação do problema.

Complementando a análise jurídica da questão, ainda ressaltou o TJ⁄RS que, existindo ato voluntário do motorista do ônibus na causa do acidente, seria irrelevante a afirmação de que a origem da conduta residiria em um perigo causado por terceiro, qual seja, o caminhoneiro que realizou a tentativa temerária de ultrapassagem.
Isso porque, segundo o acórdão, mesmo na hipótese de reconhecimento de estado de necessidade por parte do preposto da ré haveria dever de indenizar, na medida em que a vítima não era a causadora do perigo que se procurou evitar.

Em desfavor de tal afirmação, traz a recorrente questão de direito intertemporal, salientando que o acórdão é inteiramente fundamentado nas disposições sobre estado de necessidade que constam no CC⁄02 – quais sejam, os arts. 188, II, e 929 – mas o fato ocorreu em 1.990, de forma que é aplicável o CC⁄16 nos seus artigos 160, II, e 1.519, cujas redações eram diferentes em ponto substancial para o deslinde da controvérsia.
Com efeito, dizia o art. 1.519 do CC⁄16 que “Se o dono da coisa, no caso do art. 160, II, não for culpado do perigo, assistir-lhe-á direito à indenização do prejuízo, que sofreu”. O art. 929 do CC⁄02 mantém a mesma estrutura, mas acrescenta, no início de sua redação, menção expressa à “pessoa lesada”, realizando a partir disso apenas correções gramaticais em face da pluralidade de sujeitos da oração.
A seu turno, o art. 160, II, do CC⁄16 reputava não constituir ato ilícito “a deterioração ou destruição da coisa alheia, a fim de remover perigo iminente”, enquanto o atual art. 188, II, se refere à “deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente”.

Antes de se ter por iniciada a discussão sobre tal tema, é preciso estabelecer com clareza que a controvérsia está centrada em uma alegada diferença de alcance entre os dispositivos correlatos dos dois Códigos e não simplesmente no fato de que o acórdão recorrido fez menção expressa a dispositivos do CC⁄02. A simples citação isolada de um artigo do atual Código Civil como fundamento para a resolução de controvérsia nascida na vigência do Código Civil anterior nenhuma celeuma causa quando não há dúvidas acerca da similitude dos dispositivos, sendo possível verificar, inclusive, que o próprio STJ vem tomando por prática a citação, em seus acórdãos, dos artigos correspondentes nos dois estatutos, ainda quando a causa se refira a fatos ocorridos anteriormente a 2.002 (nesse sentido, dentre muitos, o AgRg no Ag nº 630.688⁄PR, 3ª Turma, Rel. Min. Menezes Direito, DJ de 03.04.2006; Resp nº 742.137⁄RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ de 29.10.2007).

iii.ii) O estado de necessidade no Direito Civil.

Colocada a questão da aparente dicotomia existente no CC⁄16 entre reparação a danos materiais e reparação à própria pessoa, cabe ressaltar que é da natureza do tema relativo às excludentes de ilicitude o surgimento de dúvidas a respeito da correta ponderação de valores a partir dos bens envolvidos; basta lembrar a riquíssima controvérsia existente no âmbito penal, no tocante à necessidade ou não de uma vinculação entre a relevância do bem a ser salvo e a do bem a ser sacrificado, e se seria possível, para proteger bem material, agir com sacrifício da vida de terceiro.
Porém, nem sempre é adequado – e na presente hipótese não o seria – procurar igualar as discussões cíveis com as criminais, porque a discussão na esfera civil exige ponderação por prisma diverso daquele adotado pelo juízo criminal.

Na perspectiva puramente privada, existem várias normas, nos dois Códigos Civis em questão, que se baseiam em 'situações de necessidade' genericamente consideradas e que disciplinam as relações jurídicas daí decorrentes entre os particulares, como, por exemplo, as relativas à passagem forçada (art. 559 e ss. do CC⁄16 e 1.285 do CC⁄02) e ao direito de tapagem (art. 588, § 4º, do CC⁄16 e 1.297, § 3º, do CC⁄02).
No campo civil, portanto, a particularidade dos arts. 160, II, e 1.519 do CC⁄16 é que tais normas tratam de responsabilidade por ato previamente considerado lícito. Portanto, se no direito penal, a exclusão da ilicitude com base no estado de necessidade afasta definitivamente a pretensão punitiva, no cível, ainda é possível discutir, como ocorre no caso, se resta alguma responsabilidade àquele que agiu sob o abrigo de tal circunstância, ressalvado o direito de regresso deste contra o verdadeiro causador do perigo.
Nesse sentido, os seguintes precedentes: AgRg no Ag 789.883⁄MG, 4ª Turma, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ de 04⁄06⁄2007 e REsp 124.527⁄SP, 4ª Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJ de 04.05.2000.

iii.iii) Análise dos arts. 160, II, e 1.519 do CC⁄16.

Ao menos em termos literais, é verídica a afirmação contida no recurso especial de que o art. 1.519 do CC⁄16 conferia direito à indenização apenas pela destruição de coisa, se o dono desta não fora culpado do perigo, em face daquele que agiu em estado de necessidade, enquanto que o dispositivo correspondente do CC⁄02 assegura o mesmo direito tanto se o prejuízo for material quanto pessoal.
Houve, realmente, uma alteração sensível na literalidade dos dispositivos aplicáveis à hipótese. Uma pesquisa à doutrina indica também que o ponto controverso não é questão acaciana; existem reflexos concretos na opinião dos doutrinadores a respeito da eventual diferença de alcance entre os dispositivos comparados, verbis:
“O Código Civil de 1916 só contemplava a figura do estado de necessidade em relação aos danos causados às coisas, não às pessoas. Por essa razão, na vigência do referido diploma, escreveu Wilson Melo da Silva: 'Pela nossa lei, os danos porventura levados a efeito em decorrência desse estado de necessidade, similarmente que acontece com o Código das Obrigações suíço e diversamente do que no direito italiano se verifica, só podem dizer respeito às coisas e, nunca, às pessoas. Nesse sentido é a decisão do Tribunal de São Paulo: 'As ofensas físicas praticadas com o fito de remover perigo iminente não estão compreendidas na responsabilidade de seu autor que as praticou por culpa de terceiro. Essa responsabilidade, consagrada pelos arts. 1.519 e 1.520 do Código Civil [de 1916], refere-se tão-somente à deterioração ou destruição das cousas alheias' (RT, 100:533)” (Carlos Roberto Gonçalves. “Responsabilidade Civil – de acordo com o Novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10-1-2002)”. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 708⁄709).

Porém, neste julgamento a questão ganha contornos próprios porque não só houve lesão à pessoa, mas também ocorreu a morte desta.

Em face da constatação do evento morte, a discussão travada passa a versar sobre direito pessoal, mas não da vítima propriamente dita – lembrando-se que a redação dos arts. 188, II e 929 do CC⁄02 se referem expressamente à “pessoa lesada” – mas sim direito pessoal de terceiro que é estranho à configuração fática da situação de estado de necessidade em questão, qual seja, a mãe da falecida, que é autora da presente ação.
Se é verdade que tal ressalva não afeta a existência da controvérsia, ela exige, sem dúvida, que se altere ligeiramente o foco do estudo, pois, muito embora o fundamento do direito à indenização seja sempre o mesmo nos dois casos – a existência de regras que obrigam aquele que age em estado de necessidade ao ressarcimento do dano quando a vítima não deu causa ao perigo – na presente hipótese, passa a ser necessária a intermediação de outras regras de responsabilidade civil, notadamente o art. 1.526 do CC⁄16 (atual art. 943), segundo o qual “o direito de exigir reparação, e a obrigação de prestá-la transmitem-se com a herança, exceto nos casos que este Código excluir” (ressalva que não consta no CC⁄02).
Assim, é natural que, tratando o art. 160, II, do CC⁄16 apenas da reparação de coisas, devesse existir outra norma simétrica que garantisse aos herdeiros da vítima fatal a reparação do ato praticado em estado de necessidade. Tal norma, no Código antigo, era o art. 1.540, segundo o qual “as disposições precedentes [relativas à liquidação da indenização por homicídio ou lesão corporal] aplicam-se ainda ao caso em que a morte, ou lesão, resulte de ato considerado crime justificável, se não foi perpetrado pelo ofensor em repulsa de agressão do ofendido”.
Sobre esse dispositivo, Clovis Bevilaqua afirmava que “crimes justificaveis são os praticados em legitima defeza e em caso de necessidade (Código Penal, arts. 32-35). Como a isenção da responsabilidade penal não importa a da civil, as pessoas, que praticarem morte, ou lesão, em legítima defeza, ou em caso de necessidade, terão de reparar o damno, se aquelles factos não forem conseqüência de aggressão do offendido, isto é, se este for culpado” (“Código Civil dos Estados Unidos do Brasil”. São Paulo: Livraria Francisco Alves, Vol. V, 1.919, p. 305⁄306. As referências são ao Código Criminal do Império de 1.890). No mesmo sentido, ainda, Nuno Santos Neves, em monografia específica sobre o tema (“O estado de necessidade no direito civil - tese”. Vitória, 1958, p. 103).
A complementariedade existente entre os arts. 160, 1.519 e 1.540 do CC⁄16 é evidente para Carvalho Santos, quando este, ao tratar do art. 1.540, comenta que:
“O que se percebe, desde logo, sem grande esforço, é a má colocação do dispositivo supra, na parte em que o Código se ocupa da liquidação das obrigações por atos ilícitos. Trata-se, evidentemente, de um texto que encerra uma declaração de direito e, por isso mesmo, melhor ficaria colocada na parte geral, a seguir ao art. 160, com remissão aos arts. 1.537, 1.538 e 1.539” (“Código Civil brasileiro interpretado”. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, Vol. XXI, 11ª Edição, p. 160).

A partir de tais considerações, é interessante ressaltar que o novo CC⁄02, ao mesmo tempo em que trouxe para seus arts. 188 e 929 a menção à lesão à pessoa, não repetiu, no Capítulo II do Título IX do Livro das Obrigações, relativo à liquidação das indenizações, norma semelhante ao art. 1.540 do Código passado.

iii.iv) Conseqüências. A questão da interpretação.

Com base nessa visão mais ampla da controvérsia, portanto, é possível afirmar não ser correta a tese esposada pelo recurso especial, no sentido de que teria havido aplicação retroativa de disciplina jurídica inexistente ao tempo dos fatos.
Em resumo, verifica-se que o CC⁄16 já disciplinava, expressamente, a reparação do dano causado por morte em circunstância de estado de necessidade. Porém, o dispositivo expresso – art. 1.540 – estava fora do contexto das excludentes de ilicitude. O novo Código, na esteira da crítica de Carvalho Santos, forneceu apenas outra sistematização legislativa para o tema.
Do quanto exposto, conclui-se, com segurança, que o CC⁄16 disciplinava a matéria posta em discussão neste julgamento, e, portanto, não há que se falar em aplicação retroativa do CC⁄02.

Superada a dúvida sobre uma eventual inovação legislativa, cabe, ainda, indagar a respeito da legalidade da utilização, pelo TJ⁄RS, de uma fundamentação que, em última análise, exige um cruzamento de referências legislativas.
Nesse sentido, é essencial ressaltar que a interpretação puramente literal dos arts. 160, II e 1.519 do CC⁄16 há tempos vem sendo desafiada por uma construção jurídica que informa tais regras a partir de uma hierarquia de valores presentes no ordenamento jurídico como um todo, pois evidentemente não poderia ter deixado de chamar a atenção o fato de que o CC⁄16, à primeira vista, invertia a ordem de importância de certos valores.
Não é de hoje, portanto, que uma interpretação contextualizada do CC⁄16 aponta para a desconformidade teleológica de uma norma de responsabilidade civil que garante o patrimônio, mas deixa à deriva o ser humano, tanto física quanto moralmente considerado.
Nesse sentido, há que se fazer referência à posição de José de Aguiar Dias em sua obra clássica sobre responsabilidade civil, quando afirma que:

“(...) no Tribunal de São Paulo foi proferido aresto que constitui verdadeiro padrão no assunto. Para não ficar comprimido entre um bonde e um caminhão, um motorista atirou seu carro sobre a calçada, onde feriu gravemente um pedestre. Na primeira decisão, o Tribunal isentou o motorista e assentou que o art. 160, nº II, só se refere a coisa e não a pessoas. De modo que concedia proteção às coisas e negava à personalidade humana, bem de valor inestimável, anomalia salientada em seu voto pelo ilustre desembargador Leme da Silva.
Essa decisão foi, porém, acertadamente reformada, invocando-se no julgado definitivo o límpido ensinamento de Peretti-Griva: 'Se é humano que cada um procure salvar-se é também humano que aquele que sofre, por fato nosso, o dano, em vez de nós, tenha direito de reclamar a converção patrimonial do sacrifício que lhe tenhamos causado. O estado de necessidade, considerado como força maior na determinação do dano, se fosse deixado a si, haveria imposto suas conseqüências danosas sobre nós: nós o desviamos de seu mecanismo, para fazê-lo atingir um terceiro inocente. Somos, assim, responsáveis pelo evento'.
Motorista que, para salvar a própria vida, causou dano a terceiro, foi absolvido da obrigação de indenizá-los, por acórdão do Supremo Tribunal Federal, relatado pelo ministro Temístocles Cavalcanti (RTJ, vol. 49, p. 802), para quem o art. 1.519 do Código Civil só se aplica às coisas e não às pessoas, o que seria confirmado pelo seu art. 160. O erro do julgado ora referido começa pelo fato de considerar os bens materiais mais dignos de proteção que os bens extrapatrimoniais. E resulta de não se haver atentado para a justificação do dispositivo, produzida por Justiniano de Serpa e adotada pelo grande Clóvis Beviláqua e segundo a qual a idéia dominante na construção jurídica do art. 160 é a de que todo dano desse gênero deve ser reparado, independentemente de culpa ou dolo (Clóvis, Comentário ao art. 160). Se o ato é lícito, por se ter como legítimo a defesa de sua vida, não é lícito fazê-lo em detrimento da vida de terceiro, que não criou o perigo” (sic - “Da responsabilidade civil”. Rio de Janeiro: Forense, 10ª edição, Vol. II, 1995, p. 677⁄678).

É também antiga, portanto, a defesa da ampliação do alcance literal dos arts. 160, II, e 1.519 do CC⁄16, ainda que analisados isoladamente e sem o apoio do art. 1.540 do mesmo Código, ampliação essa que foi acolhida pelo CC⁄02.
Assim, a questão se resume à possibilidade de conferir à posterior atividade legislativa influência na atividade de interpretação e aplicação da lei antiga a cada caso concreto.
Na análise de questão bastante semelhante a esta e também derivada da substituição de antigo diploma legislativo por um novo – qual seja, o Decreto-lei nº 7.661⁄45 pela nova Lei de Falências (Lei nº 10.101⁄05) – proferi voto, em duas oportunidades (Resp nº 912.178⁄SP e Resp nº 965.727⁄SP), sustentando que é necessário diferenciar, quando o assunto está centrado na alegação de que houve retroação da lei nova pela via interpretativa, entre duas situações possíveis em tese: na primeira, o Tribunal, em determinado caso, entende que a lei antiga já continha, ao menos como princípio, a solução que veio a ser explicitada e reforçada pela lei nova; nessa situação, a referência ao diploma atual não seria nada mais do que um argumento 'a fortiori', ou seja, um reforço argumentativo, pois a solução já existia e já era inteiramente aplicável, e agora, como reforço de interpretação, verifica-se que o legislador tomou tal solução como a base do futuro sistema, revalidando um entendimento já existente.
Nesse caso, a decisão tem bases fincadas na lei do tempo do fato; o que ocorre é, simplesmente, a adoção de uma vertente interpretativa possível. Nesse caso, poder-se-ia, no máximo, criticar o Tribunal por, eventualmente, ter alterado uma posição vencedora em casos passados; mas tal crítica, conquanto tenha certo sentido em uma perspectiva conservadora acerca da necessidade de segurança jurídica, não é motivo para invalidar a decisão inovadora, pois, por outro lado, é absolutamente necessário que a jurisprudência faça as adequações da lei às mudanças sociais.

Na segunda situação, o Tribunal assume que a conclusão não se origina de uma análise dos princípios aplicáveis à lide de acordo com a lei do tempo; esta situação far-se-ia presente se o Tribunal afirmasse que, em hipótese alguma, haveria na lei revogada espaço para solução prevista na lei nova, ainda que por via interpretativa. Aqui, a sistematização da nova Lei seria usada, então, como um verdadeiro fundamento, e não como mero argumento de reforço.
Assim colocada a questão, verifica-se que a presente hipótese versa, sem dúvida, sobre hipótese assemelhada à primeira situação, apenas com a peculiaridade de que se faz necessária, para perfeita simetria, a intercessão indireta de uma terceira norma – o art. 1.540 do CC⁄16 – pois esta perdeu sua autonomia e foi agregada, no CC⁄02, ao art. 188.

Em resumo, portanto, a alegação de que houve retroação de disciplina jurídica posterior por parte do TJ⁄RS fica afastada pela correta delimitação do problema, a partir do reconhecimento de que o direito pleiteado tem origem em uma situação de estado de necessidade, mas não tem a vítima do dano como titular; tratando-se de direito pleiteado por sua ascendente, o direito em questão é pessoal e próprio desta, o que atrai a incidência dos arts. 1.526 e 1.540 do CC⁄16, sendo tais dispositivos suficientes para que se complete a disciplina jurídica necessária à completa responsabilização civil daquele que causou o evento morte agindo em estado de necessidade.
Da mesma forma, igualmente a partir do correto entendimento do problema e da análise valorativa a respeito das normas do CC⁄16, deve ser reconhecido o fato de que as diferenças entre os dois Códigos no tratamento do tema se encontram muito mais no aspecto de sistematização legislativa do tema do que no campo jurídico propriamente dito.

Forte em tais razões, NÃO CONHEÇO do recurso especial.